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A Q U I L O  Q U E  C I R C U L A,  E M E R G E

Daniela Bousso 

 

 

A influência das ciências biológicas pode ser estudada nas artes visuais desde os primórdios da humanidade, das manifestações expressivas nas cavernas até os movimentos artísticos como o Romantismo, o Simbolismo e o Surrealismo. Abrange praticamente todas as linguagens, do desenho à pintura, da fotografia ao cinema e a da arte tecnológica a partir dos anos 1970.

Daí em diante o termo Bio Art foi utilizado para designar processos artísticos que utilizam ferramentas e técnicas da ciência para fazer obras de arte. A mescla de bactérias, micróbios, fluorescências, códigos computacionais, observação ou até mesmo a alteração de formas naturais por parte dos humanos caracterizam o termo.

Bio Art é a soma das artes visuais com as ciências biológicas, para a criação de metáforas que colocam em pauta a relação entre seres humanos e natureza. Artistas como Stelarc, Mc Cormack e o brasileiro Eduardo Kac testaram, experimentaram e desenvolveram formas de expressão e práticas que entrelaçam a cultura e as ciências em suas poéticas.

Uma vez que adentramos a era do Antropoceno, na qual a atividade humana define o impacto sobre o meio ambiente, frente à iminência de um colapso global, muitos autores e artistas têm se dedicado à urgência das questões ambientais. A resposta vem com forte acento surrealista, que ecoa de modo a indagar qual o nosso papel no mundo.

Armarinhos Teixeira, nascido em São Paulo em 1974, traça aproximações entre arte, ciências e biologia, esta última central no seu discurso. A obra aborda o tema da Pós Natureza no planeta. Segundo o artista é uma era que já estamos vivenciando e que define um estado atual das coisas, uma emergência: conservação e sobrevivência são seminais no seu foco de investigação. Sua pesquisa trata de como juntar estas duas prioridades, enquanto os desafios ambientais assumem papel inquietante.

Daí o convívio entre materiais artificiais e elementos orgânicos, para evidenciar o dissenso e a sua condição disruptiva. Ao projetar um grande laboratório, Armarinhos desenvolve um trabalho engajado, no qual micro-organismos duelam com outras instâncias, como por exemplo, o plano macropolítico. Sabemos que a arte não é desígnio da neutralidade, então qual seria o papel da arte hoje? O que leva Armarinhos a refluir na ambiguidade do binômio natureza e cultura?

Tudo o que circula emerge.

No conjunto de recipientes biológicos, dois tanques, uma escultura em tronco de madeira e três mesas em inox com objetos laboratoriais são apresentados. A simulação de um tronco de árvore cortado e queimado, com insetos e animais acoplados ao mesmo, mais um tanque de plantas aquáticas, depositados sobre a mesa baixa em aço inoxidável, alude às queimadas juntamente com dois os desenhos apresentados na mostra, elementos estes que fecham o desígnio de uma miragem contemporânea.

Já em outro tanque e nas duas mesas mais altas em inox, plantas, peixes e crustáceos convivem e se movimentam. Armarinhos tece uma crítica ao turismo aquático nas regiões litorâneas, que promove uma demanda constante de consumo de peixes e crustáceos. Esses animais têm os mesmos princípios nervosos que nós, humanos. Eles são capazes de calcular distâncias, sentem outros cheiros no mar e reagem à presença dos seres humanos para mantê-los à sua volta.

Autores como Bastos e Policarpo entendem que “a estratégia para manter os visitantes interessados e próximos à obra é a garantia de criação de novos estímulos e permanência no sistema”. (BASTOS e POLICARPO, 2019, p.241)

 

Segundo Pelbart, “em domínios vários, da filosofia à ecologia, seres que antes pareciam reclusos à esfera da subjetividade ganharam um outro estatuto, uma nova via”. (PELBART, 2019, p. 250).

A criação a partir de micro-organismos configura um ecossistema artificial, que evidencia a pluralidade e a diferença como possibilidades de existência no mundo - e parece clara a afirmação de que

 

“…a dimensão estética do conhecimento não é um atributo exclusivo do humano. Em sistemas vivos tidos como primitivos -insetos, pássaros, animais marinhos - em sua “regulagem” ao meio ambiente desenvolvem estratégias que poderiam se classificar como estéticas”. (BASTOS e POLICARPO, 2019 p. 238).

O repertório do artista desenvolveu-se desde menino, quando ainda habitava o bairro da Liberdade e a obra de Jacques Cousteau começou a povoar o seu universo. Mais tarde passou muito tempo no litoral paulista, no cerrado e no pantanal. O mar sempre foi presença fundamental em sua vida. Ainda garoto almejava ser marinheiro e já observava as evoluções marítimas.

Nos anos 1990, quando chega a Salvador, conhece Amyr Klink, toma consciência a respeito das questões ambientais e encontra o primeiro ponto de inflexão em seu trabalho: o início da devastação marítima, agora questão central na obra, que Armarinhos Teixeira considera como a maior tragédia ambiental hoje, e isso ainda não inclui as matas.

Transformações biológicas e mutações genéticas não estão em foco quando Armarinhos opera entre materiais industriais e materiais orgânicos, na série das esculturas que figuram como grandes entidades nesta mostra. O trabalho é uma resposta aos deslocamentos culturais que irrompem como resultado da vida científica, das suas relações com o mundo tecnológico e industrial.

Aí se explica a razão do artista utilizar redes industriais de pesca nas mantas confeccionadas em poliéster, que atualmente dão forma a estas esculturas. Ao acompanhar acidentes maiores com redes de pesca e o cotidiano de pescadores, os materiais das catástrofes passam a ser adotados por Armarinhos como a própria obra. Fios vegetais, fios fósseis como o nylon, o TNT e sintéticos, corais esbranquiçados, junto com os animais marítimos e plantas, integram o trabalho.

“Estamos nos acabando: em solo e em problemas sociais” afirma o artista, para quem os fósseis povoam o princípio da vida. “A nossa relação passa pelo princípio fóssil e a morte está ligada à vida, mediando o animal e o vegetal. O princípio da vida, a nossa evolução e mesmo o alimento que os veganos consomem passam pelo princípio fóssil. Fungos e cogumelos nascem a partir de outra vida. Toda a vida parte de condições fósseis. Tudo que é ligado à terra é fossilizado. Há uma diferença de sessenta por cento entre os nutrientes dos vegetais hidropônicos e os que vêm da terra”, diz Armarinhos.

 

A ideia crescente de fracasso do Antropocentrismo tem dotado a sua produção de funcionalidade, na medida em que busca ressignificar o seu repertório, a fim de criar uma noção de valor. A insubordinação configura este universo valorativo, que orbita ao redor de materiais industriais e micro-organismos vivos, tal como nos recipientes e nos tanques em que apresenta plantas exóticas, peixes e crustáceos, que o artista considera “faxineiros do mar”.

 

Armarinhos Teixeira elabora o seu universo poético no cruzamento entre arte e ciências em “Aquilo que circula emerge”. Ao trabalhar a ideia de fossilização como metáfora de todas as formas da existência, enfatiza um apelo de alerta e chama a nossa atenção para  as desmesuras das formas de consumo exacerbado, em um planeta cujo fim tem sido incansavelmente anunciado. Tudo o que circula emerge.

T H A T W H I C H C I R C U L A T E S, E M E R G E S 

Daniela Bousso 

 

The influence of biological sciences can be seen and studied in the visual arts dating back to the dawn of humanity, from expressive manifestations in caves to artistic movements such as Romanticism, Symbolism and Surrealism. It covers practically all languages, from drawing to painting, photography to cinema and technological art from the 1970s onwards. 

Henceforth, the term Bio Art was used to designate artistic processes that used scientific tools and techniques to make works of art. The mixture of bacteria, microbes, fluorescence, computer codes, observation and even the alteration of natural forms by humans characterize the term. 

Bio Art is the sum of visual arts combined with biological sciences, for the creation of metaphors that bring to the fore the relationship between human beings and nature. Artists such as Stelarc, Mc Cormack and the Brazilian Eduardo Kac have tested, experimented with and developed forms of expression and practices that intertwine culture and science in their poetics. 

As we enter the Anthropocene era, in which human activity defines the impact on the environment, in the face of imminent global collapse, many authors and artists have dedicated themselves to the urgency of environmental issues. The answer comes with a strong surrealist accent, which echoes in order to ask what our role in the world is. 

Armarinhos Teixeira, born in São Paulo in 1974, draws similarities between art, science and biology, the latter central to his discourse. The work addresses the theme of Post-Nature on the Planet. According to the artist, it is an era that we are already experiencing and that defines the current state of affairs as an emergency. Conservation and survival are seminal to his investigative focus. His research is about how to bring these two priorities together, as environmental challenges take on a disquieting role. 

Hence the coexistence between artificial materials and organic elements, to highlight the dissent and its disruptive condition. When designing a large laboratory, Armarinhos develops an engaged work, in which micro-organisms compete with other instances such as the macro-political plan. We know that the aim of art is not neutrality, so what should the role of art be today? What makes Amarinhos recede into the ambiguity of the environmental and cultural binomial? 

Everything that circulates emerges. 

In the set of biological recipients, two tanks, a sculpture of a tree trunk and three stainless steel tables with laboratory objects are presented. The simulation of a cut and burned tree trunk, with insects and animals attached to it, another tank of aquatic plants, deposited on a low stainless steel table, together with two drawings on display in the show alludes to the burnings, elements that complete the design of a contempory mirage. 

In another tank and on the two highest stainless steel tables, plants, fish and shellfish live together and move around. Armarinhos criticizes water tourism in coastal regions, which promotes a constant demand for the consumption of fish and crustaceans. These animals are guided by the same sensory principles as we humans. They are able to calculate distances, sense foreign odours in the sea, and react to the presence of humans. 

Authors such as Bastos and Policarpo understand that “the strategy to keep visitors interested and close to the work is to guarantee the creation of new stimuli and permanence in the system”. (BASTOS and POLICARPO, 2019, p.241) 

 

According to Pelbart, “in various domains, from philosophy to ecology, entities who previously seemed reclusive to the sphere of subjectivity have gained another status, a new path”. (PELBART, 2019, p. 250). 

The creation from micro-organisms configures an artificial ecosystem, which highlights plurality and difference as possibilities of existence in the world and the statement that 

 

“...the aesthetic dimension of knowledge is not an exclusive human attribute. In living systems considered primitive- insects, birds, marine animals - in their “adjustment” to the environment,  they develop strategies that could be classified as aesthetic”. (BASTOS and POLICARPO, 2019 p. 238). 

The artist’s repertoire began developing while still a boy, living in the Liberdade neighbourhood of São Paulo where the work of Jacques Cousteau began to populate his universe. Later, he spent a lot of time on the coast of São Paulo, in the cerrado (arid regions) and in the wetlands. The sea has always been a fundamental presence in his life. As a boy, he aspired to be a sailor and was already observing marine developments. 

In the 1990s, when he arrived in Salvador, he met Amyr Klink, became aware of environmental issues and arrived at the first turning point in his work: the beginning of maritime devastation, now a central issue in his work, which the artist considers as the greatest environmental tragedy of today, and that still does not include the forests. 

Biological transformations and genetic mutations are not in focus when Armarinhos operates between industrial and organic materials, in the series of sculptures that figure as major entities in this exhibition. Work is a response to the cultural shifts that erupt as a result of scientific life and in its relations to the technological and industrial world. 

This explains why he uses industrial fishing nets in the blankets made of polyester, which now shape these sculptures. By following major accidents with fishing nets and the daily lives of fishermen, the materials for disasters become the work itself. Vegetable threads, fossil threads such as nylon, TNT and synthetics, whitish corals, together with marine animals and plants, are all part of the work. 

“We are destroying ourselves: on the ground physically and with social problems”, says the artist, for whom fossils populate the beginning of life. “Our relationship goes through the fossil principle and death is linked to life, mediating the animal and the plant. The principle of life, our evolution and even the food that vegans consume pass through the fossil principle. Fungi and mushrooms are born from another life. All life starts from fossil conditions. Everything connected to the earth is fossilized. There is a sixty percent difference between the nutrients in hydroponic vegetables and those that come from the earth”, says Armarinhos. 

 

The growing idea of the failure of Anthropocentrism has endowed its production with functionality, as it seeks to reframe its repertoire in order to create a notion of value. Insubordination configures this evaluative universe, which orbits around industrial materials and living micro-organisms, such as in the two tables and the biological recipient where exotic plants, fish and crustaceans are presented, which the artist considers “sea cleaners”. 

 

Armarinhos Teixeira elaborates his poetic universe at the crossroads between art and science in “What circulates emerges”. By working on the idea of fossilization as a metaphor for all forms of existence, he emphasizes an alert call and draws our attention to the forms of excess characterized by exaggerated consumption, on a planet whose end has been relentlessly announced. Everything that circulates emerges. 

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